**tá cheio de spoiler real oficial**
Nas entranhas da série AMAR É PARA OS FORTES podemos perceber que não é a tragédia que norteia o viver daqueles personagens. E sim a capacidade que carregamos dentro de nós em expressarmos e agirmos com afetividade nas nossas comunidades. A solidariedade, o olhar atento, o suporte que encontramos no olhar do outro, uma comidinha caseira, o dormir de conchinha, um carinho no rosto, a busca incansável por justiça. São gestos como esses que sustentam os desejos de vidas de boa parte de uma população que convive com a tragédia a todo momento, em muitas instâncias.
Podemos narrar a história negra como uma história recheada de carinho. Sim, carinho. Se você investigar as palavras em primeira pessoa, daqueles que narram a sua própria forma de viver, você vai constatar que são existências que produziram amor em grande escala. Não só para dentro. Expandiram além de seus próprios quintais. Também devemos considerar que a história se atualiza e produzimos outros modos de viver, deixamos outros marcos históricos.
No episódio 6, canetada de direção da Katia Lund e com a fotografia de Lílis Soares tem muitas cenas bonitas. A que destaco, é a do bolo de coco e a entrega da placa de propaganda das tranças de Rita (Tatiana Tibúrcio), feita pelo seu filho, o Sinistro (Breno Ferreira). Essa cena quase não tem corte, é uma cena que dá a sensação de continuidade e flui muito bem. E isso também é um trabalho tanto de decupagem de direção quanto de montagem, que foi feita pelo Rodrigo Menecucci que deixou essa sensação mais evidente. A cena foi toda feita no steadycam. Eu acompanhei no videoassist a gravação dela e lembro que foram muitos takes.
O que me chama atenção nessa cena é a progressão da atuação no que tange o carinho. Sinistro entrega a placa que ele mesmo pintou para ajudar a mãe a divulgar a sua volta como trancista, depois da demissão em um emprego de carteira assinada que ela tinha. Ela passa a mão no rosto, com uma timidez, mas acarinha o filho. Depois, Sinistro sente o cheiro do bolo e abre um sorriso esplêndido. Mas logo se preocupa quando a mãe diz que fez o bolo para lembrar de Sushi. A voz de Rita é uma voz de saudade do mais novo mas que não cai numa dor profunda. Ela não faz uma cara de “acabada”.
E isso é um detalhe de direção que faz muita diferença com os rumos que uma cena pode ter porque todo mundo ali sabia que o assunto que protagoniza a cena é a vontade de Rita em permanecer com seus filhos perto dela. Então não interessa aqui um corpo enrijecido afogado em tristeza.
O segundo momento é quando Sinistro diz o que Rita quer ouvir: que está prestes a entrar no emprego que ela conseguiu pra ele. E aí temos o segundo momento da progressão de carinho que ela avança com todo o seu corpo e seu amor, agarra e beija o filho. Seu sentimento é de plena felicidade ao saber que seu filho pode garantir um futuro melhor, com um emprego.
Outra coisa que acho muito bonita é o desenho de luz. Mesmo de noite, a casa é iluminada, mas mesmo assim existe contraste, sombras. Há desenho e beleza sobre os elementos que rodeiam os personagens. As janelas estão abertas, as plantas vivas, há horizonte na janela, respiro. É uma luz noturna bem “golden” (dourada), reluzente. Isso ajuda a quem assiste ter uma experiência observar que naquela vida há dignidade.
No episódio 2, a direção é minha em parceria com a Katia Lund e a fotografia é do Daniel Primo Há uma cena, na volta do cemitério, em que Rita coloca o Sinistro entre suas pernas e limpa os machucados que ele tem na cabeça depois de ter tomado porrada de policiais numa manifestação após enterro do Sushi. A cena é entrecortada com flashes da manifestação e foi montada pela Karen Harley.
A fotografia consegue criar uma atmosfera muito bonita que fala direto com o sentimento dos personagens. É como se eles estivessem fechado a cortina mas deixaram uma frestinha aberta para a luz entrar. Isso é muito simbólico porque o contraste super marcado está em diálogo com uma luminância mais clara. Luz e sombra coexistem.
O movimento de câmera foi feito todo na mão, o mais perto possível deles, sem invadir e criar desconforto aos atores. Lembro que chegamos nos set e, ao rever a decupagem, vimos que não fazia mais sentido filmar do jeito que a gente tinha imaginado. E aí decidimos filmar essa troca deles de perto. Quem ama, cuida. E a gente precisa sempre ver de perto gestos como esses.
O episódio 5 foi dirigido pelo Daniel Lieff e com fotografia da Lílis Soares. Há uma cena de sexo com Bela (Liza Del Dala) e Sinistro beeeem bonita. Depois de uma festa, eles vão para um motel. No corredor, uma suavemente luz fria. Quando eles abrem a porta, o contraste entre a luz de dentro, quente alaranjada, nos convida a olhar esse amor entre dois jovens negros de uma forma mais poética. A montagem é da Tainá Diniz.
A câmera carrega uma suavidade muito grande, não sei se foi filmado com steady ou câmera na mão. Mas a Lílis faz uma câmera na mão muito bonita. Gosto muito. O jogo de cena entre os atores é de muito carinho. O olhar do Sinistro para Bela é um olhar de alguém que sabe que está diante de uma deusa.
A decupagem privilegiou os detalhes, o cuidado com o corpo um do outro. Sexo não como selvageria e sim como um gesto de carinho profundo, com tesão, com desejo, com proximidade. É uma cena que fica na memória e faz a gente lembrar dos momentos que vivemos isso com intensidade. Teria aqui um certo gatilho? kkkkkk
E por último, quero registrar o episódio 7 que dirigi e a Lílis fotografou. A cena em que Rita e Sinistro almoçam um cozido e Rita o surpreende com um presente. Essa é uma cena que eu tava muito animada de filmar. E esse episódio todo foi decupado, junto com a Lílis, com muito cuidado e bem antes da gravação.
É de praxe eu escolher o cozido como comida para refeições especiais entre famílias negras. É uma prato que coloca a diversidade na mesa e no paladar. E eu gosto do simbolismo, das cores e da forma que esse prato evoca. A montagem é do Lucílio Jota que me conhece bastante e sabe do quanto gosto de frisar em cena os silêncios que o afeto produz.
É uma cena que o aspecto de cor nos fez lembrar um final de semana agradável. Os personagens estão a vontade. A Rita veste um Alaka, roupa que tem um simbolismo de autoridade para mulheres de religião de matriz africana. A decupagem da cena sempre volta pra mesa, privilegiando a comida, que é por meio desse almoço que se destrava o direito materno de afetividade crucial da relação entre os dois: quando Rita reconhece como arte o que Sinistro faz. E o lembra que sua trajetória começou faz tempo.
É uma cena em que, mesmo numa situação que os faz ficar sentados, eles conseguem trocar carinhos no olhar, tocam seus corpos, abraçam, se beijam. E mais uma vez estamos diante de um registro onde o paladar produz boas lembranças de alguém.
Há muitas situações onde nós, diretores, escolhemos frisar a afetividade entre os personagens com a nossa decupagem de direção. Daria um livro escrever sobre como a afetividade negra foi retratada nesta série. Convido vocês a assistirem a série. Mas se você já assistiu, que tal assistir mais uma vez com o prisma focado nos momentos em que a afetividade rouba a cena? Você vai perceber o quão bonito é ver a possibilidade em falar de um assunto urgente sem deixar de lado aquilo que a vida nos dá de mais profundo que é a capacidade de amar.
AMAR É PARA OS FORTES é uma série produzida pela Pródigo Filmes.
Criada por Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Marcelo D2
Dirigida por Daniel Lieff, Katia Lund e Yasmin Thayná