**tá cheio de spoiler real oficial**
É importante posicionar os códigos semióticos que estão por trás dessa imagem presente na série AMAR É PARA OS FORTES . Esse personagem, Digão (Maicon Rodrigues), está queimando uma farda. Mas ele não queima uma farda. Ao fazer isso, o seu gesto é de ir contra um discurso que diz que para ser um bom policial você deve matar as pessoas. O tal “atirar na cabecinha”. É esse o discurso por trás da farda que Digão queima. Ele não vira bonzinho nem santo por esse ato.
Não se trata disso.
Quando fazemos ficção, toda ação que um personagem faz é para justificar o jogo dramatúrgico que nós, roteirista, estabelecemos. Alguns atos desse personagem são discursos. Uma obra de audiovisual está cheia de afirmações. Toda e qualquer história busca dizer algo com a jornada que se apresenta, por meio do que os personagens fazem e do que eles se tornam.
Esse personagem foi escrito como um policial negro que nunca se sentiu confortável com esse trabalho. É o clássico caso de carreira familiar. A mãe é médica, os filhos também vão ser. O pai é policial, Digão também foi ser. E aí o que temos é um jovem extremamente frustrado com o seu futuro. Não gosta do que faz. O que ele quer é surfar. Essa é a sua grande e verdadeira paixão.
Quando eu entrei na série, Digão e sua família eram brancos. Primeira coisa que falei foi: e se as duas famílias fossem negras? Porque eu sabia que a história ia cair no senso comum, o negro contra o branco. A gente já viu muitas histórias com essa dualidade. E elas ainda continuam sendo importante de serem contadas.
Mas aí as famílias viraram pretas. A complexidade chega mais profunda porque tocamos no ponto que é quando instituições brancas nos usam para que a gente mate uns aos outros. Se odeie mesmo, no mais profundo. E o racismo funciona muuuuito bem assim.
Se a vida de todas as pessoas importa, tinha que se levar em consideração que a polícia que mais mata também é a que mais morre. E os fardados que são assassinados tem uma cor em comum: a preta. Não vamos falar disso? Não vamos falar que o Rodrigo (pai, Bukassa Kabengele), mesmo no cargo de corregedor, é comandado por um branco e não exerce a autonomia que esperava ter?
Na história, o Digão não morre. A família dele segue. Sim, são “protegidos”. Mas Digão é condenado e vai preso. É provado que ele assassinou o Kevin (João Tibúrcio). E que ele mentiu no depoimento que deu a polícia. Mas a gente sabe que essa não é uma realidade no Brasil. Casos como esse, não são solucionados, levam anos, muitos deles são arquivados e não vão pra frente.
Digão queima a farda porque o personagem precisa agir diante do caos. E esse é um gesto para afirmar que não podemos admitir a continuidade de práticas organizadas que destroem a vida e a existência de pessoas de cor.
A arte existe também para que a gente possa imaginar aquilo que a gente quer ser no futuro.
AMAR É PARA OS FORTES é uma série produzida pela Pródigo Filmes.
Criada por Antonia Pellegrino, Camila Agustini e Marcelo D2
Dirigida por Daniel Lieff, Katia Lund e Yasmin Thayná