**tá cheio de spoiler real oficial**
A primeira cena da série AMAR É PARA OS FORTES mostra jovens negros no topo de um edifício pichando uma placa de anúncio político. O slogan do candidato a governador é: “Governador que faz”. Um dos integrantes do grupo vai lá e risca um “X” na palavra “faz”. É um ato de intervenção para chamar atenção das pessoas que passarem por ali e olharem o alto daquele prédio.
Chamar atenção nas alturas é algo muito comum no gesto da pichação.
ESCRITO POR ANTONIA PELLEGRINO, CAMILA AGUSTINI, DANIEL CASTRO, RAFAEL SOUZA-RIBEIRO E YASMIN THAYNÁ
Depois a gente assiste o grupo passando por uma abordagem policial violenta (a famosa dura) e o áudio da situação vira uma música feita pelo Rato. Podemos dizer aí que estamos diante de um grupo de artistas que reagem a violência policial.
Para falar como obras de arte são parte da dramaturgia, ou seja, no texto, no roteiro, primeiro é preciso voltar lá trás, no momento em que estávamos separando os ingredientes para preparar o bolo.
Um dos criadores da série, Marcelo D2, escreveu e dirigiu o média-metragem que carrega o mesmo nome da série. Nesse trabalho anterior, já existia essa relação com a arte e os personagens do coletivo que se chama, a princípio, “crew”.
Então, um dos desafios iniciais era incorporar os personagens do média-metragem, que leva o mesmo nome da série. Cada um desses personagens representam os quatro elementos artísticos que compõe o movimento hip hop: o Grafite (representado por Sinistro), MC (voz, que seria a Peixe, mas as palavras dela também estão nas fotografias), DJ (música, que é o Rato), Break (dança, Snupi).
Mais a frente na história, surge a personagem Bela, com a poesia, que também pode ser pensada na parte MC.
Me fascina muito o fato das mulheres negras ocuparem esse lugar simbólico na série.
Depois que o menino Sushi (Kevin) é assassinado, a busca do coletivo é chamar atenção do mundo pro caso e responsabilizar os policiais que tiraram a vida do irmão de Sinistro.
E o que eles fazem?
1 – Sem saber do paradeiro do irmão, Sinistro, junto da Crew, espalham o número do telefone do hospital e manda geral ligar lá perguntando “Cadê o Kevin?” A poderosa rede da Crew vira o hospital de cabeça pra baixo.
2 – Sinistro joga um balde de tinta vermelha num carro de polícia, tira foto e espalha nas redes
3 – Sinistro pinta um painel com o rosto de Sushi e a Crew, incluindo a Bela, tem a ideia de elaborar uma campanha de financiamento coletivo para criação de um memorial das crianças que foram vítimas de violência
4 – A Crew realiza um encontro com jovens na favela e projetam artes que denunciam violência policial. Viralizam.
5 – Depois que Rato é preso injustamente, mobilizam uma passeata poética dentro da comunidade convocando moradores para uma manifestação em frente a base da polícia. Eles repudiam a prisão arbitrária e exigem a liberdade do Rato.
6 – A Crew sai da favela, vai para o centro da cidade, puxam uma manifestação na praça e convocam mães que tiveram seus filhos assassinados pela Polícia Militar. Eles registram em vídeo as histórias dessas mulheres.
7 – Anunciam o fim da Crew porque estão sendo perseguidos pela polícia e projetam, anonimamente, no centro da cidade, um memorial com a história de crianças que foram assassinadas
8 – Dentro de um barracão de samba, a Crew confecciona um barco. A pintura no barco de Sinistro faz pensar sobre a violência policial por uma perspectiva histórica, desde a colonização aos dias atuais. Também coloca a poesia de Bela nas caixas de som
Tá. Eu elenquei um monte de situação, mas o que isso tem a ver necessariamente com a dramaturgia da série?
De que maneira essas obras de arte tiveram que ser escritas no roteiro para contar essa história?
Sinistro joga um balde de tinta vermelha num carro de polícia, tira foto e espalha nas redes sociais.
Beyoncé: a ref. Lógico. No clipe “Formation” tem uma imagem muito impactante que a Beyoncé construiu. Ela em cima de um carro de polícia afogado numa grande enchente. Mas essa imagem não é sobre a Beyoncé dando close num carro. É sobre um olhar de uma pessoa negra que vê essa instituição (polícia) como uma instituição afundada. Uma instituição afogada. Uma instituição que falha ao matar inocentes em grande escala.
Olhando por esse prisma da Beyoncé, durante o roteiro, nos perguntamos o que o Sinistro poderia fazer para chamar atenção da violência policial que muitos jovens negros sofrem dentro e fora de seus territórios. E aí veio a ideia do carro de polícia com tinta vermelha, que Sinistro rabisca no episódio 3.
A segunda obra que eu gostaria de comentar é, no último episódio, quando o Sinistro pinta um painel na base de um barco com a história da opressão policial desde a colonização e expõe em praça pública.
Primeira coisa é que aquele local em que foi filmado essa cena do barco é o local onde passou o maior número de pessoas escravizadas sequestradas do continente africano. É o Porto do Rio de Janeiro, próximo ao Cais do Valongo, lugar símbolo da crueldade da colonização europeia. No roteiro, a ideia era que fosse uma alegoria tipo de desfile de escola de samba, um tripé, que expusesse figuras históricas, que desse nomes aos bois.
Uma das coisas que me incomoda é o fato da violência da escravidão ser quase sempre narrada do chicote pra baixo e quase nunca do chicote pra cima. O nome das pessoas que seguram o chicote são nomes extremamente preservados até hoje. Então a minha provocação e busca enquanto roteirista era resolver isso: expor essas caras, expor a cor, o nome e o sobrenome dessa gente.
Então, no roteiro, foi escrito assim:
Lembro o quanto foi trabalhoso chegar ao resultado final para a filmagem. A diretora de arte, Joana Mureb, junto de sua equipe, fez muitos e muuuuitos testes, ideias, enfim, o barco foi literalmente criado aos 47 do segundo tempo. Foi um esforço coletivo para se chegar na ideia do painel, que foi brilhantemente pintado pelo artista Miguel Afa.
Esse texto é sobre processo. Sobre tempo, sobre paciência, sobre refazimentos que a dramaturgia espelhou na realidade do fazer. Quando o grupo de artistas da série coloca essa obra de arte robusta na rua, eles tornam a premissa da série pública em forma de instalação. O discurso desta série está resumida no painel: a violência policial contemporânea é um reflexo da violência colonial. Nada mudou. Homens negros militares matam outros homens negros civis. Homens negros civis matam outros homens negros militares.
O desejo é que no futuro essa realidade possa ser transformada.