Uma breve reflexão sobre masculinidades em Cassavetes e Deren
Texto escrito em 2018 para uma disciplina do curso de cinema, na Puc Rio.
John Cassavetes, em Sombras (1959), parece não estar preocupado em contar uma história dentro de uma cosmologia clássica: conflito central que define a história, tempos separados dentro de uma tradicional estrutura cinematográfica em que, ao apresentar um personagem, o protagonista, o tempo o desenrola o seu fim numa ação conflitual. As detonantes aparecem como pedras no caminhos para que o fim seja convincente.
Ao ver sombras, narrativamente, parece que os obstáculos narrativos protagonizam o filme. As sombras são as pessoas, os seus interiores, o modo como elas intervém no mundo e interagem entre elas. Não há mocinhos, são pessoas fora das classificações que o romantismo criou. A convenção é a relação humana em suas mais variadas formas.
No texto “Metáforas da visão”, de Stan Brakhage, há uma passagem que se liga no tempo das ideias sequenciais de Cassavetes. Diz assim: “Ver é fixar” (pg. 341). E qual a fixação que fica dessas sombras que multiplicam no tempo do filme?
Temos uma mulher, branca, jovem com irmãos negros, tentando ganhar a vida em Nova York, na cena artística. Há, também, um amor, a quem ela se doa, sexualmente, pela primeira vez: um jovem, branco, com uma postura agressiva. Ao tempo que, seus irmãos, especialmente o negro, mantém uma relação de extremo carinho. Aqui, pela época onde questões políticas e sociais explodem nos EUA e no restante do mundo, me parece não ser a toa essa “inversão” que Cassavetes propõe como uma inversão estética (a junção fílmica imagética, o tempo montado junto com o contexto histórico-político no qual o filme se insere). E aí é que fixamos uma imagem, uma ideia: quem é o negro nesse momento histórico? É possível imaginá-lo num arquétipo de um homem carinhoso? Protetor? Por que Cassavetes escolhe um personagem de cor para simbolizar uma segurança familiar?
Uma outra cena que chama atenção, é quando os amigos decidem ir ao Metropolitan. No jardim de concreto deste museu de arte, faz frio, neva. Os amigos passeiam pelas obras e dizem não sentir nada, não entenderem. Eles buscam o significado daquilo. Até que um diverge trazendo uma reflexão, que é suprimida pelo tempo das urgências de um pensamento que quer achar a lógica e a explicação. O divergente, talvez seja ele o tal do “fracassado”? Este personagem fixa na imagem aquilo que nem sempre tendemos a crer: a lógica da explicação não é o entendimento, e sim a experiência. Daqui, talvez, o que falamos sobre “olhar um quadro mais de uma vez. Tem dias que ele não quer dialogar com a gente.” Mas para além disso, há uma questão que diz respeito a negação. Ali, nega-se o tempo da experiência pois o Tempo narrativo deve ser um Tempo lógico, com rápida precisão e entendimento. É como se o tempo do pensar não existisse.
Mas Maya Deren se nega a essa lógica. Aqui, o filme, um experimental, experimenta o olhar. O que você está vendo? E agora? Você sabe quem está na tela? Aquela mulher sou eu ou é outra? São várias de mim? E agora, pra onde vou? Você consegue acompanhar minhas sombras? Elas são sombras minhas ou são as suas sombras que você projeta em mim ao ver o meu caminhar? Tramas do entardecer faz perguntas, mas não quer resposta. O filme busca a experiência.
Se Cassavetes usa as sombras como perambuladores, como personagens que vivem de um lado para o outro em Nova York, presos aos seus universos sociais amontoados de questões e detonantes reais, Daren dança com as sombras: as sombras guiam seu caminho. Há uma cena em que na vitrola, toca uma música harmoniosa, um perfume aos ouvidos. Numa camada diegética primeira, a música elabora a tensão. Uma mão retira da agulha a harmonia: é para você viver a tensão. Dessa vez, não quero aliviar. Ouça você mesmo.
A mulher vai atrás de sua própria sombra. É a montagem que faz esse encontro ser inalcançável. Encontro é choque. E só é possível se há luz e sombra em constante diálogo. A fotografia se aproveita de luz natural num sol que parece ser o de meio dia. Quando a luz bate sobre a cabeça, a sombra que se cria sobre um corpo na vertical é uma sobra miúda. Se a câmera mostra de frente, vemos uma sombra no próprio rosto. A montagem evidencia esse sol, esse desencontro. A personagem perde de sua própria sombra.
Logo depois, o som apita o interior. Ao se deparar com várias de si, faz uma oferenda: a chave pode ser uma faca. Há um processo inverso da morte: ao enfiar a faca, renasce uma lembrança. Um homem a levanta e a convida para subir pela mesma escada que, no outro plano da vida, ao caminhar por ela, parecia, na verdade, levitar num espaço-interior mórbido. “Toda imagem tem um dentro (Deleuze)”. E esse dentro, carrega uma dor. Nesta cena, não há som. É o silêncio que rasga a sequência, pois nem sempre a imagem é sonora. A imagem basta: é o cheio e o vazio se misturando ali. Brakhage nos diz “não pode haver um amor definitivo onde há medo” (p. 342) E é exatamente isso que aquela mulher parece sentir ao ver ali, na sua frente, em outro plano da vida, este homem.
E quem será este homem? Para onde aquela chave que hora representa a liberdade, pelo signo de uma chave, ora representa a morte, pela faca, levará a nossa experiência. Novamente, Metáforas da visão conversa com a gente. “E aqui, em algum lugar, possuímos um olho capaz de imaginar qualquer coisa. E então temos a câmera-olho, com suas lentes orientadas no sentido de conseguir a composição segundo a perspectiva Ocidental do século XIX (exemplificada da melhor maneira pelo aglomerado arquitetônico de detalhes de ruínas clássicas), subjugando a luz e limitando o quadro dentro desses parâmetros” (pg 345).
E aqui, relembramos o homem a qual a jovem de Cassavetes é apaixonada. A ligação temporal dos dois filmes é sugerida pelo título que eles carregam. Trata-se de sombras. E as sombras, aqui, talvez, represente uma masculinidade decadente, a que mata, a que é agressiva, manipuladora, abusiva. Cassavetes, ainda que entenda sua condição enquanto um homem, faz essa crítica do jeito que lhe convém, utilizando quadros próximos, criando ambiências claustrofóbicas. Deren, transcende a convenção. Ela não vai sugerir essa experiência de ver um abusivo na decupagem. Deren trata isso no plano surreal, utilizando a sugestão do significado do surreal como linguagem. Só é possível experimentar por completo a dor de uma masculinidade através do óculos surrealista.
No filme, há uma fala, um discurso: é preciso se libertar de certas masculinidades. Nem que, para isso, você tenha que morrer num Tempo e renascer em outro.